Da flor ao bioma: estudo explica como a polinização conecta as paisagens do Cerrado
23/10/2025
(Foto: Reprodução) Vegetação do Cerrado no Parque Nacional Chapada dos Veadeiros, localizado em Goiás
Eliane de Castro / Wikimedia Commons
Um grupo de pesquisadores brasileiros publicou na revista Biological Reviews, da Cambridge Philosophical Society, um estudo inédito que reúne e analisa tudo o que se sabe sobre a polinização e a reprodução das plantas do Cerrado. O trabalho, resultado de anos de levantamento e síntese científica, destaca a importância das interações entre plantas e animais polinizadores para a manutenção da biodiversidade do bioma.
Segundo os autores, a polinização cruzada, que ocorre quando o pólen é transportado entre indivíduos diferentes, é essencial para a sobrevivência da maioria das espécies vegetais do Cerrado. A pesquisa mostra ainda que essas relações ecológicas estão profundamente ligadas à diversidade de paisagens do bioma, que inclui campos, savanas, florestas e veredas.
Bate-caixa (Palicourea rigida) é uma planta típica do Cerrado
Art Riz / iNaturalist
Ao correlacionar os ciclos de floração e a movimentação dos polinizadores entre diferentes formações vegetais, o estudo reforça que a complexidade natural do Cerrado é o que garante o funcionamento do ecossistema. A perda de qualquer uma dessas paisagens, alertam os cientistas, ameaça não só os polinizadores, mas também o equilíbrio ambiental e a própria produtividade agrícola.
"Publicar em uma revista de destaque na nossa área é um reconhecimento importante da comunidade científica pelo trabalho sério e consistente que realizamos. Isso reforça que aqui, no Brasil, também produzimos ciência de qualidade, conduzida por pesquisadores qualificados, mesmo diante da falta frequente de investimentos adequados", explica Renata Trevizan , pesquisadora de pós-doutorado da UFMG.
Mosaico complexo de paisagens
O Cerrado exibe uma rica diversidade de paisagens, compostas por diferentes formações de vegetação. Entre elas estão as formações florestais com árvores de dossel (copa) fechado, as savânicas (que representam o cerrado típico que costumamos imaginar, com arbustos retorcidos espalhados entre gramíneas) e as formações campestres.
Nesse mosaico complexo também é preciso destacar as veredas, que são berços de águas reconhecidos pela presença do buriti (Mauritia flexuosa). Além dos campos rupestres, que se desenvolvem sobre os afloramentos rochosos.
Buriti (Mauritia flexuosa)
Guillaume Léotard / iNaturalist
"Acredito que há dois pontos principais no nosso trabalho. O primeiro é que a maioria das plantas com flores do bioma depende da polinização. Muitas delas são auto-incompatíveis, ou seja, requerem polinização cruzada para a produção de frutos e sementes. Dessa forma, a polinização cruzada, que envolve o transporte de pólen entre plantas diferentes é essencial", pontua Trevizan.
Da mesma forma, as plantas também são importantes para os animais que dependem dos recursos que as flores oferecem para sua sobrevivência. É nessa interação entre plantas e polinizadores que se sustenta a reprodução das espécies e a manutenção da rica biodiversidade.
O segundo ponto importante do estudo é que a polinização está relacionada às características paisagísticas intrínsecas do cerrado. O bioma é conhecido por apresentar uma grande diversidade de paisagens naturais que incluem campos, savanas e florestas. Estas paisagens constituem um mosaico de diferentes formações que se emaranham pelo território.
"Nós discutimos que as plantas de cada uma dessas paisagens apresentam picos de floração em diferentes épocas do ano. Assim, para obter seus recursos nas flores, os polinizadores ( como beija-flores, morcegos e abelhas) devem se movimentar entre essas diferentes paisagens. Esse padrão cria uma complementaridade de habitats em todo o mosaico de vegetação, garantindo recursos contínuos para os polinizadores durante todo o ano. Assim , a interação entre plantas e polinizadores conecta-se e é sustentada pela complexidade da paisagem. Isso ressalta que todas as paisagens do Cerrado devem ser conservadas para manter o funcionamento do ecossistema", ressalta o pesquisador João Cardoso.
Perda de polinizadores e nos cultivos
Na entanto, o avanço da devastação do bioma seja por pressões dos setores agrícola e pecuário está levantando um alerta para o bioma. Com a perda de áreas de diferentes tipos no mosaico da vegetação, menos polinizadores poderão ser suportados devido à complementaridade de habitats que existe entre as áreas.
"Com o tempo, o que pode acontecer é uma perda da diversidade de polinizadores devido à ausência de paisagens abertas. Isso tem consequências gravíssimas para a reprodução das plantas nativas, que dependem dos serviços de polinizadores. Ainda, teremos perdas econômicas mais evidentes. Sem polinizadores, cultivos como a soja, feijão, café, tomate e maracujá terão sua produtividade reduzida", destaca o pesquisador João Cardoso.
A perda das paisagens e dos polinizadores pode gerar um colapso no ecossistema. Como a maior parte das plantas depende dos polinizadores, isso pode gerar redução das populações e até extinções de plantas.
Beija-flor chifre-de-ouro é um polinizador que habita o bioma
Marcos Guirado/VC no TG
As novas paisagens simplificadas podem ficar sem vegetação, ou ter a dominância de plantas menos dependentes de polinizadores e/ou de espécies exóticas.
Além da diminuição da diversidade e dos serviços de polinização em plantas nativas e cultivadas, existem vários outros riscos relacionados à não manutenção das populações vegetais nativas. Por exemplo, outros processos podem sucumbir, tais como o estoque de carbono, a manutenção do microclima e o ciclo da água.
"Apesar da conservação das florestas receber mais apoio da mídia, da opinião popular e de políticas públicas, o Cerrado é um complexo fantástico de paisagens interconectadas e interdependentes. Cada paisagem, com suas particularidades, está ali em um funcionamento natural por milhares de anos, bem antes de chegarmos aqui. Assim, campos, savanas e florestas merecem nossa apreciação e criação de uma consciência coletiva sobre o valor intrínseco da natureza. Em especial, a importância das paisagens abertas deve ter apelo popular e chegar aos tomadores de decisões para que medidas urgentes sejam tomadas. Não só os polinizadores precisam de todas as paisagens, mas também nós", pondera Cardoso.
Em 2024, a região do Cerrado testemunhou um dos desmatamentos mais severos do Brasil
Getty Images via BBC
Saiba mais sobre as plantas do Cerrado neste link
Embora as formações florestais sejam protegidas por lei, estas por si só são insuficientes para manter a alta diversidade de polinizadores, com potenciais efeitos em cascata sobre os serviços ecossistêmicos que prestam.
"Esperamos que o Cerrado deixe de ser visto como o bioma–sacrifício e passe a ser reconhecido como o bioma do benefício, do cuidado e da atenção, tanto do público em geral quanto dos tomadores de decisão. Essas paisagens garantem a vida de plantas, animais e comunidades tradicionais que dependem dos serviços ecossistêmicos proporcionados por essa biodiversidade em equilíbrio", conclui Renata Trevizan.
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